domingo, 9 de maio de 2010
 

Saneamento e saúde: os impactos da carência e caminhos para a transformação da realidade brasileira


Osaneamento é um direito essencial garantido constitucionalmente no Brasil. Esse reconhecimento legal é reflexo das profundas implicações desses serviços para a saúde pública e do ambiente à medida que sua carência pode influenciar de forma negativa em campos como educação, trabalho, economia, biodiversidade e disponibilidade hídrica.

Entretanto, a realidade traduzida em um déficit de rede coletora de esgotos de 49,1% (PNAD, 2008) revela o atraso da agenda nacional em saneamento. Apesar de o Brasil possuir hoje o 10 maior Produto Interno Bruto do mundo, está na 70 posição com relação ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Em um terceiro ranking, o de pessoas sem acesso a banheiro, lançado pela Unicef e OMS, o país sede da Copa do Mundo de 2014 está em 7 lugar, com uma fatia de 18 milhões de brasileiros.

Tais números mostram a gravidade da situação atual do Brasil, que já apresenta maior atenção à questão desde a criação do Ministério das Cidades, em 2003, e da aprovação da Lei Federal 11.445/07. Assim, é imperativo que a sociedade conheça os impactos que a falta de saneamento provoca no país e se motive para superá-la. Nesse sentido, o Instituto Trata Brasil, Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), realiza, desde 2007, pesquisas que visam a contribuir para a construção de sólidas bases de argumentos que demonstrem a importância do saneamento para a qualidade de vida da população e que permitam delinear perspectivas para ação. Será apresentada a seguir uma síntese dos resultados desses três anos de estudo.

A imagem de crianças brincando em meio a esgotos e lixo a céu aberto é tocante aos olhos de qualquer um. Esse senso comum traduz uma realidade: aproximadamente sete crianças morrem todos os dias vítimas de diarréia e 700 mil pessoas são internadas em hospitais públicos a cada ano por doenças relacionadas a doenças decorrentes da falta de esgotamento sanitário adequado.

A reduzida oportunidade de prosperar da população em condições sociais precárias fica explícita nos resultados relacionados à escolaridade: a taxa média de acesso à rede coletora de esgotos dos que estudam 12 ou mais anos é de 70,83%, enquanto que para aqueles com menos anos de estudo (um a três anos), o acesso é de 25,57%.

Quando comparados dados entre uma área saneada e a sem o provimento dos serviços, constatou-se que a composição de um cenário desfavorável reduz o aproveitamento escolar em 18% e também a frequência ao trabalho em 11%.

As maiores vítimas dessa carência são as crianças de um a seis anos que vivem em favelas, conforme demonstra a pesquisa com base na PNAD (2003) e no Censo Demográfico (2000): a chance de um caçula morador de favela morrer antes de completar seis anos é 28,2% superior àqueles em melhores condições.

Apesar de ainda ínfimos, o Brasil vem demonstrado maiores avanços nos dois últimos anos: em 2007, a proporção de crianças de um a quatro anos de idade que adoeceram por doenças parasitárias ou infecciosas foi de 23,3%, quase cinco pontos percentuais a menos do que no ano anterior, segundo os dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS. Esse dado pode estar relacionado à maior taxa de aumento do índice de acesso à rede geral de esgotos das últimas duas décadas: 4,18% entre 2007 e 2008, enquanto nos anos anteriores (1992-2006) registrava-se crescimento de apenas 1,31% ao ano.

É preciso compreender, ademais, os impactos econômicos e culturais da questão que configuram gargalos à universalização do saneamento. A Pesquisa de Orçamentos Familiares – POF/IBGE indicou que 45,65% dos informantes atrasaram as contas da casa nos 12 meses que antecederam a pesquisa, demonstrando o esclarecimento da população com relação ao custo de operação e manutenção dos sistemas – sendo preciso aumentar a transparência e a acessibilidade à prestação de contas.

No Brasil, se gasta 0,09% do Produto Interno Bruto (PIB) com saneamento básico e cerca de 1,76% com saúde. De acordo com estudos econômicos, o maior investimento em saneamento reduz gastos para o tratamento de doenças parasitárias e infecciosas, otimizando as despesas em saúde.

Do ponto de vista cultural e político, a não priorização dos investimentos em saneamento pode ser decor-rente de uma crise de percepções tanto por parte do poder público quanto da sociedade de maneira geral. Para levantar essa dimensão, o Instituto Trata Brasil e Ibope Inteligência entrevistaram 1.008 moradores das 79 cidades brasileiras com mais de 300 mil habitantes, universo que concentra 70 milhões de brasileiros. Dentre seus principais resultados, a pesquisa revelou que 31% não souberam definir saneamento básico e apesar de 70% o relacionarem a doenças e problemas de saúde, 50% não se expressaram dispostas a pagar pelos serviços. Ainda, 68% afirmaram ser a administração municipal a responsável pelos serviços de saneamento básico, mas apenas 5% escolheram seus candidatos nas últimas eleições municipais por priorizarem a questão. Esses dados de percepção demonstram a incoerência entre o conhecimento da população sobre o tema e como priorizam as ações e as cobram do poder público.

Apesar desse quadro, hoje é possível termos um olhar mais otimista sobre a transformação da realidade brasileira em termos de falta de saneamento: o Brasil possui mecanismos de investimento e políticas públicas que possibilitam a permanência e continuidade dos avanços dos anos de 2007 e 2008. Entre-tanto, é preciso implementar políticas no nível local com qualidade.

Ao finalizar essa reflexão, espera-se que o cenário do saneamento aqui tecido contribua para o processo de mobilização nacional à promoção da saúde, condição para o bem-viver de um país que possui metas a serem cumpridas em nível internacional, como às relacionadas aos Objetivos do Milênio das Nações Unidas em que se compromete a redução da demanda de saneamento à metade até 2015. Se mantido o ritmo de crescimento de 2007 e 2008, o Brasil alcançará essa meta em aproximadamente 25 anos. Tratase, sobretudo, de um desafio cultural, pedagógico e político às comunidades brasileiras.

Raul Pinho é presidente executivo do Instituto Trata Brasil e Aline Matulja é engenheira sanitarista e ambiental, mestranda em Saúde Pública (FSP/USP) e colaboradora do Instituto Trata Brasil (www.tratabrasil.org.br)

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